Uma infância singular
Os primeiros anos de Joseph Haydn foram e continuam sendo um grande desafio. Foi um desafio constante para o jovem músico que muitas vezes duelou com a pobreza e a falta de boas oportunidades em seus primeiros anos na profissão; no entanto, estes anos continuam sendo um desafio também para os estudiosos da vida do compositor. Isto se deve porque seu entorno social diferia em muito do que costumamos observar em outras personalidades do universo musical: a família de Joseph Haydn era uma família relativamente pobre, do interior austríaco – região profundamente identificada com a cultura húngara – e nenhum de seus parentes próximos foram músicos profissionais. Do jovem Haydn podia se esperar que continuasse seguindo a vocação familiar e cultivasse a vida de artesão. No máximo, talvez se dedicasse à vida religiosa, sonho de sua mãe. Que se tornasse um dos mais importantes compositores europeus, mestre de capela de uma das famílias mais importantes da aristocracia austríaca e que sua fama atravessasse fronteiras, sendo aclamado, por exemplo, em Londres, isso era basicamente impossível de se acreditar.

Se compararmos os primeiros anos de dois de seus contemporâneos mais jovens, Mozart e Beethoven – cujos parentes próximos possuíam importantes cargos musicais – os abismos se tornam ainda mais profundos. Diferentemente de Mozart e Beethoven, Haydn não tomara aulas de música ministradas pelo pai na infância e não costumara a ter a casa “preenchida por música” como tiveram seus dois contemporâneos. O pai de Mozart era vice-mestre de capela de Salzburg e dedicou-se com extremo afinco a ensinar a profissão de músico para o jovem Wolfgang e sua irmã. Beethoven, apesar de conturbadas relações com o pai desde a infância, possuía uma família que a profissão fora fincada em solo fértil: seu avô era mestre de capela na corte do eleitor de Colônia e ensinara ao seu filho os segredos do ofício. Por sua vez, este se tornou também músico da corte (sem possuir, no entanto, uma carreira bem sucedida). Neste sentido, as infâncias de Mozart e Beethoven parecem seguir com certa naturalidade – isto não quer dizer que sem percalços – a estrada para se tornarem, eles também, músicos de carreira.
Como já mencionado, Joseph Haydn, porém, não possuíra nada disto. Neste sentido, não tinha nada que pudesse herdar profissionalmente de seus pais no tocante à música. Como lembra seu biógrafo Karl Geiringer, “recuando até a geração de seus bisavós, tanto maternos quanto paternos, falhamos em encontrar um músico que seja, ou mesmo qualquer pessoa que possuísse qualquer ocupação intelectual. Todos eles dedicaram seus braços seja como produtores de vinho, carpinteiros ou moleiros”. (Geiringer, 1982, p. 4). Isto não quer dizer, no entanto, que Haydn cresceu sem contato algum com a música. Como lembra o mesmo biógrafo, não havia uma ausência completa de música na casa onde o compositor nasceu. Seus pais costumavam cantar, sentados à lareira, acompanhados pela harpa, prática que não diferia muito de qualquer amador que dedica um pouco de seu tempo à música. O que se deve notar é que o interesse da criança por música parece também ter despontado desde cedo, assim como sua habilidade autodidata (Geiringer 1982, p. 10). Desde pequeno, Haydn tentava aprender sozinho alguns instrumentos musicais e parecia possuir talento para a profissão. Somente isso, apesar de ser uma característica muito notável, não garantiu um caminho menos tortuoso para o jovem músico, que não possuía quaisquer relações com músicos profissionais.
Um Self Made Man?
Tais condições costumam causar certo assombro. Em seu The Ofxord History of Western Music, o musicólogo Richard Taruskin acaba concedendo a Haydn a denominação de “Self Made Man”. Segundo o musicólogo, este tipo de pessoa que faz por si mesmo, que “sobe na vida com seus próprios esforços e contra todas as adversidades” parece encaixar de maneira perfeita na vida de Joseph Haydn (Taruskin, 2005, P. 517). De fato, sua habilidade autodidata, somada com sua origem humilde em uma região distante da capital Viena parecem dar crédito à denominação. No entanto, um olhar mais atento nos permite levantar questões.
Como dissemos anteriormente, apenas a inclinação musical e seu talento não foram suficientes para que Joseph Haydn construísse uma carreira com menos percalços. Foi necessário para Haydn construir uma rede de importantes contatos até que estivesse em condições de assumir um importante cargo musical. De Rohrau, sua cidade natal, ao palácio dos Esterházy, onde foi mestre de capela, seu caminho é uma constante busca para conseguir destaque e angariar atenção do meio musical.

Este caminho se apresenta logo cedo. Ainda com cinco anos de idade, Haydn é levado a Hamburgo pelo marido da meia-irmã de seu pai, professor de música e diretor de coro. Este homem, que se chamava Johann Mathias Franck, acaba dando a primeira oportunidade para a criança desenvolver suas habilidades musicais. Johann mantinha uma escola de cantores anexa à catedral local. Assim, Haydn torna-se um aprendiz cantor junto com várias outras crianças. Neste período, Haydn pôde pela primeira vez desenvolver suas habilidades vocais, ganhando um relativo destaque pela qualidade de sua voz. Além disso, a criança pôde aproveitar do convívio do amplo inventário de instrumentos da catedral, mantido por Johann Franck, além de desfrutar de uma ampla coleção de manuscritos musicais (Geiringer, 1982, p. 13). Seu autodidatismo pôde assim se desenvolver de maneira mais plena.
Contudo, esta etapa da vida de Joseph Haydn dura pouco. Outro momento fundamental na vida do jovem músico é quando o compositor Johann Goerg Reutter, mestre de capela da catedral de São Estevão em Viena, chegou na cidade de Hamburgo à procura de jovens coristas. Ao ouvir o jovem Haydn, Reutter pede autorização para levá-lo consigo. Assim, em poucos anos, o aprendiz de música saiu de uma pequena cidade na fronteira com a Hungria para a capital do império. Mesmo assim, a vida que Joseph Haydn leva na capital neste momento está longe da ideal. Reutter parecia não encarar seus alunos como mais do que meros coristas aprendizes. Nem mesmo a plena educação musical das crianças parecia ser de interesse do compositor. Segundo Geiringer, o desenvolvimento das vozes das crianças era o único objetivo de Reutter e os aprendizes simplesmente não recebiam qualquer educação acerca de teoria musical (Geiringer, 1982, p. 19). De novo, Haydn parece ter se fiado muito mais em seu autodidatismo do que num ensino musical adequado.

Isto reflete diretamente no próprio conhecimento musical da criança. Segundo Geiringer, a formação musical de Joseph Haydn possuía na época diversos lapsos. Seus conhecimentos tiveram que ser reparados posteriormente. Por outro lado, o desenvolvimento da prática musical com o canto, no qual sempre se destacou, o proveu com uma série de recursos musicais que sempre soube aproveitar. Mesmo assim, sua vida ainda reservaria outra reviravolta: aos 17 anos, como era comum com os garotos que se dedicavam ao canto, sua voz “quebrou” e se tornou inútil para a Catedral de São Estevão e para Reutter. No final de 1749, Joseph Haydn deixa para trás sua vida de corista para enfrentar novas dificuldades.
Capital social: sozinho em Viena

Este momento da vida de Joseph Haydn demarca outra importante diferença em relação a Mozart e Beethoven. Enquanto o primeiro passou a infância percorrendo diversas regiões da Europa e entrando em contato com músicos de destaque, e com boa parte da alta aristocracia europeia, o segundo pôde garantir através de uma série de contatos prévios feitos na cidade de Bonn uma posição de destaque entre os compositores do período, encontrando Viena de braços abertos. A musicóloga Tia DeNora chega a afirmar que Beethoven, devido aos seus altos contatos na corte, possuía talvez uma posição única frente a todos os outros músicos europeus na época (DeNora, 1995, p. 61). No entanto, para Haydn a realidade foi outra. Em seus primeiros anos em Viena, o futuro compositor não passava de um simples corista com uma boa voz e que acabou por perder seus encantos. Haydn não possuía nenhum contato no qual pudesse se fiar. Todo o seu talento e sua extrema habilidade de se “fazer por si mesmo” pareciam em vão. Diferentemente dos dois outros compositores mencionados, Joseph Haydn fora um simples aluno de música de uma escola importante de canto. Não possuía um mestre com contatos que pudessem assegurar oportunidades. Seus professores de música eram professores de outros tantos alunos da mesma instituição e Haydn, apesar de todo o talento para o canto e toda desenvoltura para o autodidatismo musical, era apenas mais um entre eles.
Desta forma, sem capital social a se fiar, as possibilidades de Haydn ao deixar a Catedral de São Estevão eram poucas. Este momento de sua vida é destacado pelo musicólogo Richard Taruskin. Como lembra o musicólogo, durante estes anos em Viena, Haydn se aproveitou de qualquer trabalho musical que aparecesse. Nesta época, chegou a tocar violino nas ruas e a se dedicar ao mercado – incipiente – de divertimento musical. Assim, suas primeiras composições foram pensadas como peças de entretenimento compostas para o mercado musical local (Taruskin, 2005, P.518).
Este é um ponto interessante também para levantar uma outra questão. O sociólogo Pierre Bourdieu em seu livro “As regras da arte”, aponta para o que vai denominar como o “mito do artista”. Tal mito tende a ver a trajetória de vida do biografado como um todo previamente justificado e cada ação do artista como uma prova verdadeira de sua predestinação. Assim, segundo o sociólogo, incorremos no que ele chama de “ilusão retrospectiva”, ou seja, uma ilusão que leva a constituir os acontecimentos últimos do criador – suas grandes obras, os êxitos de carreira – como objetivo final de suas experiências e condutas iniciais (Bourdieu, 1996, p. 213). Acontece que cada tomada de posição que este adota está condicionada por uma série de fatores que muitas vezes escapam à sua alçada. Desta maneira, algumas atitudes tomadas pelo artista analisado não se justificam automaticamente na sua “glória final”, mas sim são ações adotadas em um momento específico por condições determinadas específicas.
Assim foi com Joseph Haydn: além de músico de rua e autor de pequenas composições de entretenimento, o compositor fez parte de grupos de músicos diversos e chegou a empreender viagem com um grupo de peregrinos para Estíria, região oriental da Áustria, onde também compôs algumas peças na ocasião (Geiringer, 1982, p. 28). Ao retornar para Viena, conseguiu juntar uma certa soma em dinheiro e deixou a casa na qual morava de favor com uma família que o abrigou.

Como pudemos observar, os primeiros anos de Joseph Haydn saltam aos nossos olhos pelas dificuldades encontradas e pelo tortuoso caminho adotado. Nada parecia, no momento, indicar para o futuro compositor mestre de capela dos Esterházy. Nada parece vislumbrar o homem que ajudou a fincar as bases de pelo menos dois dos fundamentais gêneros do classicismo vienense: a sinfonia e o quarteto de cordas. A vida de Haydn até então apresentara pouca justificativa para que nos “iludíssemos de maneira retrospectiva” e encontrássemos em suas ações iniciais traços do “grande artista”. Se seu talento para o autodidatismo musical e sua voz foram destaques de grande relevância e importância, por outro lado sua ausência de capital cultural cultivado no seio da família, no que se refere à música, e a ausência praticamente absoluta de capital social, plantam dificuldades para conseguirmos estabelecer de maneira menos tortuosa os caminhos que levaram Joseph Haydn ao reconhecimento musical ímpar que recebera.
O que podemos observar é que ao longo dos anos, a partir de sua volta para a capital, uma série de fatos vão ampliando sua rede de contatos e Joseph Haydn, para além de também se “fazer sozinho”, encontrou ajuda para tornar-se quem se tornou. Em outras palavras, a ausência de bons contatos no início tortuoso de sua vida é paulatinamente reparada com uma série de acontecimentos que o levam a criar uma rede de contatos que o conduzirá, posteriormente, às portas do palácio dos Esterházy e aos primeiros degraus de seus anos de consagração musical.
Isto, no entanto, merece ser abordado posteriormente em um segundo artigo.
Referências
BOURDIEU, P. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996
TARUSKIN, R. Oxford history of western music.2, Music in the seventeenth and eighteenth century.New York: Oxford University Press, 2005
DENORA, Tia. Beethoven and the construction of genius. Musical politics in Vienna, 1792-1803. Los Angeles: University of California press, 1995
GEIRINGER, K. Haydn, a creative life in music. Los Angeles: California University Press, 1982
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